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Documentário, realidade e ficção


Documentário, realidade e ficção[1]

Guilherme Castro[2]

Ao realizador de cinema documentário, um dos temas mais necessariamente freqüentes, embora compartilhado com todas as formas artísticas de mimese, é a relação da obra com a realidade. Olhamos em volta, observamos o que acontece, dirigimos nossa câmera para uma parcela do mundo tal como se nos apresenta, uma situação, as pessoas que moram numa casa, seus gestos, movimentos e falas... o som de um carro que passa, uma sirene toca... Buscamos, no registro da realidade, descobrir o drama humano ali presente, para o qual será necessária uma narrativa estruturada. É esse o trabalho do documentarista. Mas a realidade lhe escapa.

No texto A poesia do filme, o filósofo e crítico de arte Herbert Read já dizia que “o cinema produz seus efeitos mediante imagens projetadas. Essas imagens, lançadas na tela, estão, de imediato, associadas com as imagens armazenadas na memória do espectador e, através de suas disposições e associações, fluem as emoções de surpresa, encanto, prazer, orgulho ou tristeza que sentimos nas salas de espetáculo” (Grünnewald, 1969, p 42) . Isso é o cinema, e disso não foge o documentário. Ou seja, apesar de as imagens do documentário terem sido buscadas em situações reais, são representações para as quais pretendemos, sem garantia de êxito nem controle, significados. Ora, nisso, muito mais semelhantes que diferentes, o documentário e a ficção.

O crítico Enéas de Souza assim relacionou cinema e realidade: “Se o cinema é um olhar sobre o homem no mundo, a apreensão do real não pode modificar este mundo, o pensamento do diretor deve partir do mundo e desvelar e descobrir as formas que este universo nos apresenta. A câmera, o corte, a montagem, para realizarem uma captação exata, um olhar puro sobre o mundo, devem restituir o material nos seus movimentos naturais... o mundo brota pela câmera do cineasta.” (Souza, 1974, p. 48). O mundo real, com sua lógica natural, é a referência, o material do cinema. Porém, o mundo real precisa ser descoberto, recriado e revelado pelo diretor através da câmera.

Enéas de Souza nos fornece uma boa definição de cinema: um olhar através da câmera sobre o homem no mundo. Por meio do ator (personagem) no cenário filmamos o homem no mundo. Esse conceito vale também para o filme documentário: por meio da pessoa (personagem) na locação, o mesmo homem no mundo. O material de trabalho é sempre a experiência humana (como no teatro, na literatura etc.), mediada pelo olhar através da câmera, o que origina os dois elementos técnicos intrínsecos ao cinema: o plano e o corte. Plano e corte são as unidades básicas conceituais da narrativa cinematográfica. Plano, aquilo que enquadramos pela lente da câmera, e que foi registrado num pedaço de filme, numa fita ou num arquivo, num decurso contínuo de tempo. Corte, a separação entre dois planos diferentes, através do qual podemos mudar de enquadramento, dentro da cena, ou de um lugar e de um tempo a outro, entre as cenas, no filme. Ambos elementos são a matéria de trabalho da montagem: a disposição de fragmentos (planos) gerando novos significados. Como ensinou Sergei Eisenstein: dois elementos concretos justapostos formam um terceiro abstrato, como no haicai japonês: “corvo solitário, galho desfolhado, véspera de outono.” (Eisenstein, 2002, p. 37).

A câmera enquadra o que veremos e omite o que não veremos – narrar é administrar informações (essa é a melhor pista para se entender a importância do fora de quadro). O olhar através da câmera seleciona as informações, construindo planos a serem montados, dando sentido ao real do mundo, talvez tornando-o mais evidente e compreensível. Pudovkin, fundando a teoria do cinema, já esclarecia: “a montagem é a força criadora de realidade fílmica... a natureza se limita a fornecer-nos, simplesmente, a matéria prima utilizável por aquela. É esta a única afinidade entre a realidade e o filme.” (Pudovkin, p. 29). Apesar de estar no centro da compreensão sobre o que é o cinema, a distinção entre o real e a narrativa nem sempre é bem reconhecida – e esse é um problema central em documentário.

Ora, não raro nos deparamos com um tema - que nada mais é que uma parte do drama do homem no mundo: “tema é aquela área do ‘dilema humano’ que o autor escolheu para explorar sob uma variedade de ângulos e de maneira complexa, realista e plausível” (Howard e Mabley, 1993, p. 97) - e pensamos: “daria um belo documentário, mas também um roteiro de ficção, ou uma narrativa literária. Por que não?” É apenas uma escolha, pois o material de ambos, filme documentário e filme de ficção, é a referência do mundo real, a experiência humana no mundo, o drama humano por nós percebido, enquadrado, decifrado, recriado, narrado, dramatizado.

Sim, documentário também é dramatização. Embora muita gente ainda pense que não. Miguel Faria Jr[3], diretor do documentário Vinícius, disse na TV[4] que seu filme guarda uma surpresa ao fim, tem drama e, por isso, ‘não é documentário’. O diretor revela duas coisas: é capaz de fazer um documentário contemporâneo, cheio de qualidades, e tem dificuldade de assumir que fez isso; talvez por preconceito; talvez por ainda não reconhecer, como muita gente boa, o valor dramático que pode e deve ter o documentário.

Esse valor narrativo e dramático do documentário está na origem do gênero. Um dos pioneiros do cinema documentário, John Grierson propôs e buscou uma narrativa que fosse além do mero registro de imagens e sons reais. Seguiu a crença da ‘verdade do documentário’ (que o documentário é a expressão da verdade), mas pensou, ao modo da época, que isso só seria possível com narrativa. Grierson cunhou por primeiro o termo ‘documentário’ e lhe deu um conceito, em 1926, que não apenas é o mais conhecido como ainda está repleto de significado: “documentário é o tratamento criativo da realidade”. Partindo dessa formulação, Brian Winston, professor e documentarista britânico, disse o seguinte: “Escrevendo 70 anos atrás a respeito de filmes sobre viagens e curtas-metragens de natureza, Grierson afirmou: ‘Estes filmes descrevem e até expõem, mas só raramente revelam um senso estético’”. O mesmo poderia ser dito de grande parte do que se vê hoje. Para Grierson, os documentários deveriam ser muito mais: deveriam passar do plano da descrição do material natural para arranjos, rearranjos e remodelação criativa do mundo natural”. (Mourão e Labaki, 2005, p. 22).

Winston lembra que, ao se realizar um documentário, não se deveria pretender simplesmente registrar a realidade, como uma cópia fiel. Não apenas porque o intento é impossível (como veremos adiante), mas também porque a melhor maneira de tratar a realidade em cinema é usar as ferramentas do cinema para isso, ou seja, num filme, organizamos as coisas de modo tal a propiciarmos ao espectador a leitura pretendida - embora cada um entenda a seu modo o filme assistido, sabemos. Quer dizer, ao descobrirmos nosso tema e nossa história, buscamos a melhor maneira de contá-los.

Nesse ponto, podemos colocar de modo bem simples e sem erro: fazer cinema é contar uma história em imagens e sons; seja quando temos atores interpretando falas e ações roteirizadas, seja quando mostramos aspectos do mundo com personagens reais. Sobre o que é nosso filme? Eis a primeira e mais importante pergunta, a qual precisamos voltar em cada cena, em cada escolha de enquadramento, em cada corte da montagem. O cineasta David Mamet defende que o ponto essencial ao se realizar uma cena é saber sobre o que ela trata, qual a intenção ao produzi-la. De fato, podemos verificar hoje que muito ‘do virtuosismo’ que ataca nossas produções – ajudando a encarecê-las - têm origem na incerteza ou falta de precisão dramática. Concisão e objetividade, em função de uma profunda clareza do tema, são bons caminhos a serem buscados nos filmes documentários ou ficcionais. Há 70 anos, Pudovkin já compreendera: “O tema condiciona a ação, dá-lhe cor, e, assim, é claro, inevitavelmente dá cor àquele conteúdo plástico, cuja expressão é a matéria do diretor. O diretor apenas poderá submeter o tema ao trabalho de criar sua forma unificadora quando o compreender, organicamente.” (Pudovkin, p. 45). Podemos acrescentar também que, em cinema, a melhor maneira de abordar um tema, mesmo que a intenção seja ‘realística’, quase sempre, é não se atendo exatamente ao aspecto formal e à ordem aparente das coisas.

Porém, já dissemos, o cinema (e a arte) nem sempre percebeu bem a diferença entre a realidade e a narrativa. Por quanto tempo os pintores ficaram obrigados a perseguir a intangível reprodução fiel do mundo? E quanto se levou para que a fotografia fosse aceita como arte, não mera técnica de reprodução?

Nesses pouco mais de 110 anos de cinema essa questão tem perdurado. A ilusão ‘da verdade’ da imagem reproduzida é, de fato, um dos pontos fortes do cinema. A ilusão de que a imagem não mente. Essa ‘força’ do cinema ajudou a dar tamanho crédito e eficiência, por exemplo, às propagandas de guerra do século XX, e seguem servindo ao tele-jornalismo cujas posições não são explicitadas. Por isso, no documentário, a ‘verdade da imagem’ é tema central, pois ainda há muita confusão. Se ‘focamos o mundo real, mostramos a realidade’, essa é a falsa premissa. Muita gente pensa que faz isso, grande parte do público tende a acreditar numa intrínseca verdade da imagem documental.

Filme do real? Ou realidade do filme?

Porém, precisamos afirmar claramente que, no cinema, e também no cinema documentário, a realidade é uma construção, cuja validade é dada pelos pressupostos estabelecidos no filme. Eis o tema da verossimilhança, sobre o qual muito já se falou; um conceito central da ficção. Mas o que é verossimilhança e como se aplica isso ao documentário?

Quando vamos ao cinema, na maioria dos casos é essa a proposta, vivenciamos o estado de sonhar acordado, ou seja, ‘viajamos’ na história que está sendo contada. É similar, por exemplo, à experiência de ler um bom romance, quando aguardamos a hora do dia em que podemos abrir o livro e ‘voltar ao lugar’ aonde se passa a narração, ao ‘convívio’ dos personagens, para compartilharmos as emoções vividas por eles. Quando isso ocorre? Quando o público acredita na verdade da narração. Mas de qual verdade se fala? Seria a verdade do real? Alguém conhece a verdade do real? Esse assunto é para a ciência, ou para a filosofia.

No cinema, trata-se da verdade do filme. Para entender tratar-se da verdade interna, costumamos dizer: ‘acreditamos que o super-homem voa’. Porque essa é a premissa estabelecida, habilmente construída pela narrativa em questão. Sim, a obra precisa assemelhar-se a vida, mas dentro da lógica e coerência construídas pela narrativa. Se fosse apenas ‘semelhança’ com a vida, o super-homem não poderia voar.

No teatro antigo grego havia a hoje ilustrativa figura do Deus Ex Machina. O Deus que descia na cena, baixado por guindastes, intervindo no drama e resolvendo os destinos. Volta e meia verificamos em roteiros mal resolvidos esse tipo de recurso a safar o protagonista na hora mais difícil, cuja conseqüência é tirar o espectador da viagem, fazendo com que se quebre a crença na verdade do filme. Hoje, sabemos que as boas soluções dramáticas precisam ser engendradas dentro da lógica da narrativa e de seus personagens, dentro daquilo que foi estabelecido e trabalhado. Em outras palavras, as soluções não devem ser gratuitas. A lógica interna do filme, se foi bem construída, é que confere a verdade do cinema.

‘Aceitamos acreditar’ que aquilo é ‘real’ simplesmente porque estamos no cinema e foram usados códigos adequados para indicar que esta é uma regra (quem dá as regra é quem faz o filme) necessária para acontecer a vivência da sala escura, o ‘sonhar acordado’, e aceitamos as regras, pois ‘valerá a pena’. Suspendemos provisoriamente a incredulidade. Porém, o público aceita apenas o que foi estabelecido. O super-homem voa, a namorada dele não; ela não poderá voar para escapar dos perigos e ele deverá voar quando for necessário.

As naves espaciais de Guerra nas estrelas fazem coisas incríveis, os brinquedos de Toy stories têm vida... Mas tudo isso não torna os filmes menos ou mais verdadeiros, porque verdadeiro é o tanto de humanidade – de drama humano - presente naquelas situações narradas. Sabemos que os temas dramáticos se repetem sempre: ritual de iniciação, amor, esperança, busca da felicidade, fidelidade, fortuna etc., ou seja, são questões profundamente arraigadas no psique humano. Michel Chion, escrevendo sobre roteiro de cinema, diz o seguinte sobre a repetição dos temas dramáticos: “... as histórias, decididamente, são sempre as mesmas. Há quem se aflija com isso. Quanto a nós, alegramo-nos ao ver aí o sinal de uma coesão da experiência humana através do espaço e do tempo. Como as crianças, gostamos das histórias repetidas, e quase chegaríamos a negar a possibilidade de ‘histórias novas’... Em compensação, indefinidamente aberta e renovável é a arte da narração, a arte do conto...” (Chion, 1989, p. 2).

Ora, verdadeiro é o filme que representa com verossimilhança esses dramas; em outras palavras, verdadeira é a história bem contada. “Platoon na verdade não é nem mais nem menos realista do que Dumbo. Ambos simplesmente contam bem a história, cada um à sua maneira. Em outras palavras, é tudo faz-de-conta. A questão seria: até que ponto isso vai ser um bom faz-de-conta?”. É o que diz o contemporâneo David Mamet, falando de cinema ficcional, mas que, pelo já exposto, serve para qualquer tipo de cinema, para qualquer obra que busca representar a realidade, que é uma parte do drama humano. (Mamet, 2002, p. 26).

Então não basta dizer que o documentário é o filme do real. Porque o filme de ficção pode até ser mais real que um documentário. Podemos imaginar um documentário todo mentiroso; ao menos não é isso que faria com que o filme deixasse de ser um documentário. Conhecemos filmes de ficção ‘bem realistas’. Ou seja, a verdade não é o critério diferencial do documentário.

‘O mundo como ele é?’

Disso tudo, uma questão sempre provocou calorosas discussões sobre a essência do documentário: seria possível captar o mundo como ele é?

O filme documentário trabalha com sons e imagens extraídos do mundo real. Mas isso o torna um documento da verdade? Ou melhor, podemos dizer com certeza que o filme documentário é expressão do real?

O estar diante dos fatos é uma ilusão em dois sentidos: nem o cineasta pode garantir que apreendeu no filme a realidade, uma vez que são sempre possíveis outros enquadramentos; muito menos o filme deve pretender ser a realidade, pois se trata, em qualquer hipótese, de uma representação. Há, em toda narrativa, constantes e fundamentais escolhas estéticas e ideológicas, mesmo que implícitas, mesmo que remotas. Um filme documentário será sempre uma das leituras entre infinitas possíveis. Na prática, o fazer documentário é operar seguidas escolhas sobre o que vai entrar ou não no filme, e sobre qual tratamento será dado a esse material escolhido. Porque se apresentam, a todo momento, novas possibilidades, personagens, fatos e locações. O critério para as decisões do realizador será a clareza sobre a história narrada e o conceito formal estabelecido – aquilo que chamamos de guarda-chuva conceitual.

Assim, a idéia central é que o filme documentário não é a realidade, simplesmente porque não pode ser, e sim uma construção. Ou, em outras palavras, o filme documentário não é mais ‘realidade’ do que o filme de ficção. O cinema será entendido como realista se apreender e narrar bem, com verossimilhança, parte significativa do drama humano. Mas construção, narrativa... cinema, em qualquer caso. Você escolhe virar a câmera para este lado, e não para o outro, por isso, cheio de subjetividades, autoral.

Há o famoso paradoxo: “no filme documentário o diretor tem mais liberdade de criação do que no filme de ficção”. Como, a quem se surpreenda, “se um trata do mundo real, e o outro é uma criação ficcional?” Vejamos: no documentário, roteiro mesmo só o da edição, pois antes disso o roteiro deve ser bastante precário, embora também importante; o trabalho de decupagem do diretor também deve acontecer predominantemente no set; e a montagem de fato constrói o filme, ainda mais que na ficção. Na realização do documentário a criação é mais livre, mais aberta aos caminhos dramáticos que vão surgindo e sendo apreendidos. Aí reside o potencial e a complexidade do gênero.

Nisso, a questão que se apresenta é que não existe uma realidade pronta para ser filmada, mas uma realidade em construção na frente da câmera, pois o que filmamos hoje amanhã vai estar diferente, ou com outra equipe vai ser diferente: um documentário jamais será repetido. A racionalidade que explica o mundo em conceitos fechados, ainda tão em voga, apesar de todas as conseqüências, não serve mais de modelo aos discursos do cinema documentário. O mundo apresenta uma profusão de realidades complexas, surpreendentes, repletas de verdades contraditórias; aceitar isso, lançar-se ao desafio de investigá-las e narrar o material encontrado, não como cientista, mas como cineasta (contador de histórias), esse é o desafio do documentarista.

Diferentes Posturas

Por que é tão importante essa questão da realidade e da verdade no cinema ficcional e documentário? É a discussão que sempre se fez em documentário, desde o seu surgimento, e, em função desse entendimento, há diferentes posturas a serem tomadas. Esconder a natureza de parcialidade do discurso, ou assumir uma “voz da verdade”? Revelar o mecanismo, ou apenas retratar pessoas naturais? São algumas questões centrais ao trabalho do documentarista, de muita atualidade, e cujas soluções oferecem possibilidades bem criativas, pois tudo é possível em cinema. Ao fim das contas, a questão será: fizemos ou não um bom filme?

É por isso que Eduardo Coutinho, por exemplo, revela-se e a equipe, como a dizer: “isso é um filme, feito por alguém que está escolhendo o que e como filmar. Isso não é realidade, é cinema”. Eduardo Coutinho apreendeu com profundidade esses conceitos em seus filmes: “A verdade da filmagem significa revelar em que situação, em que momento ela se dá – e todo o aleatório que pode acontecer nela.... É importantíssima, porque revela a contingência da verdade que você tem... revela muito mais a verdade da filmagem que a filmagem da verdade, porque inclusive a gente não está fazendo ciência, mas cinema.” (Lins, 2004, p. 44). A rigor, trabalhar com estas questões ajuda a tornar o filme interessante.

Mas ‘ter verdade em’ é diferente ‘ser a verdade sobre’. Consuelo Lins explica o processo de produção de Theodorico, imperador do sertão, dirigido por Coutinho para a Rede Globo, no fim dos anos 70, e que inaugurou muitas das características do trabalho do cineasta: “... se ‘de perto ninguém é normal’, outra formulação também verdadeira é: ‘de perto todo mundo é normal’. Tudo é e não é, como diz Guimarães Rosa: ‘Quase todo mais grave criminoso feroz sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos!’ O perturbador é justamente encontrar no latifundiário, no ditador, no monstro, aquilo que o aproxima de nós. ‘A complexidade, para mim, está nisso’, diz Coutinho, ‘e não na outra frase, ‘de perto ninguém é normal’. ‘De perto todo mundo é normal’ é tentar encontrar as semelhanças por baixo das diferenças’”. (Lins, 2004, p. 23).

Em 2005, o longa A queda provocou críticas de alguns por ter humanizado o Adolf Hitler. Porém, o cineasta realizou, nesta obra de ficção, exatamente o mesmo que propugna Coutinho em seus documentários. Seria de se perguntar: se não fosse humano, como teria acontecido o nazismo?

Ao se aproximar de temas ou personagens reais podemos (é um bom caminho a seguir) deixar que ele se mostre, com suas contradições, vicissitudes, mentiras, verdades, devemos evitar ao máximo os esquemas prontos, preconceituosos, clichês. Se não, teremos personagens rasos, tal qual na ficção, quando o cineasta quer falar por seus personagens. Ora, buscamos a verdade do filme, não um filme da verdade.

Personagens ‘reais’

Tem se afirmado que as pessoas filmadas em um documentário representam na frente da câmera, e que isso é um problema, pois diminui o gênero. Precisamos ter claro que no cinema - que é uma representação de parcela do drama humano - o núcleo central são os personagens criados pelo plano e montagem cinematográfica. Salvo num tipo de filme onde os entrevistados são técnicos a falarem de objetos alheios de si, o documentário se interessará por pessoas que tenham algo a revelar de subjetivo. Assim, na frente da câmera, mesmo no filme documentário, registramos personagens. A própria presença da câmera e da equipe de filmagem do documentário faz com que a pessoa se torne personagem. Em filmes em que se escondeu a filmagem (cujo exemplo é Da janela de meu quarto: sem saberem que estão sendo focados, dois garotos brincam sob a chuva), os personagens não representam para a câmera, mas foram igualmente criados, pois enquadrados, por ela.

Não é difícil observar que as pessoas reais, no seu dia-a-dia, sempre estão representando um ou outro personagem inventado para si próprias. Quer se dizer com isso que os seres humanos não têm um tal grau de autoconhecimento e transparência. Por que então se esperaria que o personagem do filme documentário abandonasse suas máscaras, revelando-se com total transparência na frente da câmera? Sabemos que o bom personagem de ficção, bem construído, é aquele cuja textura permite uma série de sub textos, dissimulações, mentiras, obliqüidades e segredos íntimos, porque assim ele é mais parecido com os seres humanos, é mais verossímil. Do mesmo modo, um personagem bem trabalhado no documentário mostra-se repleto de contradições, silêncios, titubeios, variações vocais, sub textos etc. Não queremos na ficção personagens lineares e rasos, tampouco no documentário. Assim, deixa de ter importância o fato de a pessoa estar ou não representando no documentário. E é quase certo que estará.

Se o personagem do documentário está visivelmente falso, mente, discursa, quer convencer de algo, é ideológico? A primeira opção pode ser tentar desarmá-lo, pois sempre vamos buscar que a pessoa se revele com mais profundidade. A segunda opção, não usar esse personagem; mas isso nem sempre conseguimos, pois não dá ou não queremos descartá-lo (quem decide é o diretor, porque ele responderá se o filme estiver pior ou melhor, mas ele só pode decidir conforme a lógica do filme). Porém, o melhor pode ser escancarar isso, deixar ele falar, não ajudá-lo nem desmascará-lo, mas deixá-lo mentir, deixá-lo mostrar-se como ele é; teremos um personagem que falseia, ou que mente. Como uma das coisas mais importantes que o documentarista tem a fazer é abster-se de aderir ou julgar seus representados (assim como também é aconselhável ao ficcionista não ser moralista nem colocar seus pontos de vista na voz de seus personagens), será tudo uma questão, mais uma vez, de escolhas narrativas.

Por isso, o documentário é chamado também de dramaturgia natural Porque as pessoas que representam no filme documentário não são atores representando um papel dado, mas sim o papel delas mesmas, ou o papel que elas julgam ser o delas. Então, no documentário há interpretação, mas é evidente que o personagem natural interpreta de modo diferente do que o ator na frente da câmera. Porque esse é técnico, há uma técnica a serviço da estética. Aquele é intuitivo, e o próprio nem percebe que está interpretando. E não há um planejamento do que vai acontecer: interessa a espontaneidade que o momento da filmagem gera. Busca-se uma situação reveladora. Porém, sendo o personagem do documentário uma pessoa com existência real, haverá profundas implicações metodológicas e éticas. Essa questão aparece bem nos filmes de Eduardo Coutinho: “Se as distinções entre ficção e documentário são tênues em muitos filmes, colocadas em questão em vários outros, difíceis e desnecessárias de serem estabelecidas de maneira definitiva, em pelo menos um aspecto há uma diferença radical entre esses dois campos cinematográficos: os personagens do documentário são pessoas reais, com existências reais, uma vida fora do cinema. Tornam-se ‘personagens’ depois e um longo processo em que foram pesquisados, filmados e tiveram sua participação reduzida para alguns minutos durante a montagem. Continuam a viver depois do filme, e a imagem que se produz delas pode afetá-las, para o bem ou para o mal.” (Lins, p. 163). Sem essa sensibilidade para perceber o ser humano que poderá nos revelar sua história, sem estabelecer uma relação de confiança baseada no compromisso de realizar um filme que não distorça as falas ditas na frente da nossa câmera, é impossível imaginar a realização de qualquer documentário de valor.

Da discussão sobre a realidade e a verdade no cinema, podemos afirmar que a verossimilhança, essa necessária plausibilidade, essa esperada semelhança com o mundo, no cinema documentário também é a verdade interna, é a coerência à proposta do filme, a acuidade com que são retratados os dramas humanos do tema estabelecido, é a verdade dos personagens bem retratados (mesmo que com suas mentiras). Muito semelhante com a ficção? Sim. Necessariamente, tratamos de cinema.

BIBLIOGRAFIA:

GRÜNNEWALD, José Lino. 1969. A idéia do cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

SOUZA, Enéas de. 1974. Trajetórias do cinema moderno. Porto Alegre, A Nação/SEC/ IEL.

EISENSTEIN, Sergei. 2002. A forma do filme. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

PUDOVKIN, V.I. Diretor e ator no cinema. São Paulo, Íris.

HOWARD, David e MABLEY, Edward. 1993. Teoria e prática do roteiro. São Paulo, Globo.

MOURÃO, Maria Dora e LABAKI, Almir (org.). 2005. O cinema do real. São Paulo, Cosac Naif.

CHION, Michel. 1989. O roteiro de cinema. São Paulo, Martins Fontes.

MAMET, David. 2002. Sobre direção de cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

LINS, Consuelo. 2004. O documentário de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

[1] Artigo escrito em 2006, então publicado na antiga revista do Audiovisual da Unisinos.

[2] Cineasta. Professor de cinema. Graduado em Jornalismo e Direito.

[3] Miguel Faria Jr é autor de, entre outros filmes, O Xangô de Baker Street (2001), Stelinha (1990), República dos Assassinos (1979), Pecado Mortal (1970).

[4] Miguel Faria Jr em entrevista a Roberto D’ávila.

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