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Boa Ventura - aspectos do cinema na adaptação de Porteira Fechada.

Desde o lançamento de Boa Ventura(CM, 14 min) em julho de 2015, as apresentações - até agora em salas e eventos em Porto Alegre, interior do RGS e São Paulo - têm provocado debates aprofundados sobre os modos do cinema expressar a vida interna dos personagens a partir das imagens que produz das aparências externas das coisas. A literatura e o cinema (posterior e subsidiário) se aproximam na dramaturgia, mas diferem na forma de narrar. Uma das principais diferenças é que no cinema não há possibilidade de fluxo de consciência, pois a cada ideia correspondem imagens e sons, desde que possíveis de serem produzidos (e sempre com custos).

As imagens mostram corpos em ação no plano, mas não os pensamentos e sentimentos que cada um leva em si. Essa incerteza, limite e potência, é o que torna a narrativa cinematográfica tão poderosa. O tema é antigo, porém ainda muito atual.

Em Porteira Fechada (romance de Cyro Martins), personagens aprofundados em histórias, situações dramáticas, premissas e contextos muito bem fundamentados favorecem o cinema que não quer mostrar mas revelar emoções e motivos bem guardados por debaixo das superfícies refletidas pela luz.

Na transposição de todo texto escrito para imagens e sons projetados surge uma obra nova e, embora menos que o livro, sempre aberta. As adaptações possíveis são infinitas como as leituras dos livros adaptados. Porém, enquanto no texto lido o trabalho criativo de imagem é quase todo do leitor, no cinema, oferecemos a cena muito mais acabada (e menos rica). Um paradoxo conhecido é que a literatura é mais visual que o cinema (cada leitor cria em sua mente um universo visual completo), assim, o filme adaptado quase sempre é uma diminuição da literatura (especialmente de um romance para um curta). Por isso, as filmagens dos livros favoritos geralmente são rejeitadas pelos leitores. Filmar a partir de um livro é sempre uma ousadia e um risco grande; filmar um clássico, ainda mais. A decisão de adaptarPorteira Fechada, obra e autor que conheço há bastante tempo, foi consciente para o estilo de cinema pretendido.

Imagino que a maioria dos leitores ainda não tenha assistido ao curta-metragem, adaptado de Porteira Fechada(1944), que narra o trecho da história em que a família Guedes chega à casa dos primos na cidade de Boa Ventura (trouxe para o título do filme uma ironia do texto de Cyro Martins, porque a desventura dos personagens é grande). Desde o início, busquei orientar o trabalho da câmera pela construção visual das relações incertas, repletas de interesses e passados escondidos, incompreensões e sentimentos contidos. As aparências externas nunca são exatas, mas figuram o que está dentro; aos conflitos externos correspondem uma infinidade de possíveis conflitos internos, não explicitados, mas visíveis - os dilemas dos personagens. O que aparece na cena que queremos são pistas dadas ao espectador daquilo que realmente importa, do lugar das emoções mais profundas e veladas. É o lugar do trabalho para criar a forma aparente da cena em imagens e sons (não inferidos). A essas alturas, nos debates, percebemos essa similaridade entre a psicanálise e a literatura (matérias que conheço bem pouco) e o cinema, com o qual tal trabalho.

Assim como as pessoas reais, os bons personagens são dúbios, complexos, contidos e oblíquos no modo de falarem, agirem, vestirem-se e moverem-se. A câmera identificada com olhares de personagens pulsantes e plausíveis pode construir uma cena não realista, cujas imagens não sejam nem meras ilustrações do texto, tampouco enquadramentos burocráticos para o trabalho de atores. A produção, quando compreende e constrói as imagens e sons a partir de personagens com vida interior, oferece um olhar expressionista, errático e fragmentado, portanto, muito mais atraente e até mesmo ‘real’ ao público.

São intenções de cinema, ideias em abstrato, porque sempre depende do efeito causado no espectador. Os debates sobre filme e livro, cujo conteúdo tento relatar aqui, são após a exibição e sob o efeito do filme, assim, esse texto é menor do que as possibilidades de leituras já percebidas.

Alguns personagens foram suprimidos, outros cresceram, não são as mesmas cenas do livro, tampouco as mesmas falas, e a ordem dos acontecimentos também foi alterada. Numa adaptação é preciso técnica e coragem para transformar. Maria Helena e Cláudio Martins, desde o primeiro instante, demonstraram não apenas saber e esperar essas diferenças formais, mas também creditaram total confiança e liberdade ao meu trabalho (a bem da verdade, a influência da trilogia do gaúcho a pé e o estilo de cinema proposto já apareciam de modo pronunciado em outro filme meu, Terra Prometida, CM de 2006, adaptação do conto homônimo de Taylor Diniz).

Essa jornada de exibições e debates já autoriza dizer que Boa Ventura, de forma atualizada (recorte, recriação contemporânea), consegue narrar em filme a história da família Guedes, e retratar o universo de Cyro Martins em uma obra nova e visão própria.

Não cabe a mim uma análise do filme Boa Ventura, mas nos debates são notados os desempenhos artísticos e técnicos da equipe em vários aspectos do cinema que fizemos, nos detalhes trabalhados com elenco, fotografia, arte, som, música, montagem e produção. Há erros e acertos, como em qualquer filme. Assim, além de tratar com uma das mais importantes obras da nossa literatura, sobretudo, a satisfação está em colocar ideias, propostas e conteúdo de arte no trabalho de contar histórias no cinema.

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*Roteirista e diretor do filme Boa Ventura (CM, 14 min, 2015, adaptação de Porteira Fechada, 1944, de Cyro Martins),Guilherme Castro é cineasta e jornalista, atua como diretor, roteirista e produtor, além de professor de televisão e cinema. Entre os principais trabalhos anteriores, estão Becos (2003), Terra Prometida (2006) e Transversais(2008). É doutorando em Comunicação (em Audiovisual) pela Universidade Anhembi Morumbi/SP.

*Ficha técnica de Boa Ventura: elenco: FERNANDO KIKE BARBOSA, PATSY CECATO, YONARA KARAM, JULIA BACH, EDUARDO CARDOSO, ANA PAULA SCHNEIDER , EDUARDA BACKES KOCHE roteiro e direção GUILHERME CASTRO produção ALETÉIA SELONK produção executiva GRAZIELLA FERST direção de produção GINA O´DONNELL direção de fotografia MAURÍCIO BORGES DE MEDEIROS direção de arte ADRIANA NASCIMENTO BORBA desenho e edição de som LEO BRACHT música original HIQUE GOMEZ montagem ALFREDO BARROS realização OKNA PRODUÇÕES

Guilherme Castro no set de Boa Ventura

Guilherme Castro no set de Boa Ventura

João Guedes (Fernando Kike Barbosa), a esposa, Maria José (Yonara Karan), e a filha (Júlia Bach)

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